Ontem, a lição de casa do meu filho trazia um desafio. "Peça para
seus pais lhe contarem uma escolha que tenham feito, e como isso afetou a
vida deles". Deixei a missão por conta do meu marido. Ele tem uma
história bonita, de força de vontade e superação, que definiu seu
destino a partir de uma escolha, inicialmente feita por seu pai, mas
acatada e vivenciada por ele.
No trabalho que entregou hoje na escola, havia duas imagens. Numa, o
desenho de um menino com uma enxada na mão; na outra, um médico de
jaleco branco e maleta em punho.
Porém, muito além de uma escolha meramente profissional, a decisão
de deixar o trabalho na lavoura e ingressar na faculdade de medicina foi
uma guinada na vida do menino que até os dezessete anos não conhecia
luz elétrica, vivendo num sítio onde a ocupação maior era ajudar o pai
com a enxada, perturbar a vida dos bichos e ir para a escola rural, onde
várias turmas, em diferentes estágios de aprendizado, tinham aulas na
mesma sala. Não havia água encanada, automóvel, muito menos tv ou
geladeira. Ao escolher a faculdade, uma nova versão foi escrita. E
percorrer esse caminho pode ter sido tudo, menos simples.
Enquanto orientava meu menino, me veio à lembrança trechos de Eliane
Brum, em seu mais recente livro, "Meus desacontecimentos". Logo no
comecinho ela questiona, indagando 'como cada um inventa uma vida. Como
cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada
um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se'.
Por enquanto, meu menino só pode entender acerca de escolhas
palpáveis _ coleção de figurinhas da Copa ou cartas pokémon, matinê no
cinema ou festa do amiguinho, crocs ou tênis, pijama curto ou longo, 'o
que vou ser quando crescer', que livro vamos ler antes de dormir. Com o
amadurecimento, virão questões mais relevantes, entroncamentos no meio
da estrada que fatalmente lhe desafiarão a dar uma resposta que
possivelmente conduzirá seu destino.
Nesses momentos, o controle estará em suas mãos. O trajeto escolhido
determinará uma nova versão de si mesmo. Porém, muito além das direções
que se distribuem pelo caminho, haverão outras questões, não tão
óbvias, mas ainda mais perturbadoras e íntimas. Essas serão as mais
difíceis. Porque a batalha será travada não somente entre profissões,
negócios, status e pessoas. Serão decisões mais profundas, que fará
diariamente, dentro de si mesmo, envolvendo a forma como deseja viver e
responder àquilo que não pode controlar.
Todos os dias, meu filho, você terá que escolher de que forma irá
habitar-se, para o bem ou para o mal. Porque a gente escolhe fazer-se
muito mal também. E o pior é que nem se dá conta disso, acostumados que
estamos em não nos enxergarmos ou ouvirmos no meio de tanto barulho que
há lá fora. Então imaginamos que o que não vai bem é a rua, o fulano que
não vai com a nossa cara, a esposa que ronca, o marido que não
colabora... mas no fundo somos nós. Nós, que nos afastamos da verdade, e
preferimos nos refugiar numa vida inventada que justifique nossas
mazelas.
Assim, se posso dar-lhe um conselho, escolha fazer-se bem.
É importante também que saiba escolher suas batalhas. Que não perca
tempo com expectativas irreais, aquelas que não levam a lugar algum. Nem
imagine que seu jeito de ser e viver é o certo para todos. Certamente é
o certo para você, mas não julgue nem discrimine quem reconhecer outras
formas de construir uma vida. Você descobrirá que nessa selva existem
leões e cordeiros, bichos preguiça e guepardos, e não cabe a você querer
que todos sejam leões, só porque você escolheu ser um. Depositamos
muito da gente nos outros. E muito dos outros é depositado na gente.
Desejamos que o outro seja como nós mesmos seríamos no lugar dele, mas
quem sabe o que vai dentro do coração alheio?
Uma das lições mais difíceis de se aprender nessa jornada é a
questão da aceitação. A gente traça um roteiro próprio, estabelece
metas, acrescenta vontades, junta uma grande dose de sentimentos e
espera que tudo corra conforme o combinado. Criamos expectativas em cima
de pessoas tão diferentes de nós, querendo que elas sigam o script, ou
que, pelo menos, obedeçam nosso combinado. Se somos tigres ferozes, nos
indignamos com a serenidade dos coalas. Se temos a agilidade do beija
flor, nos impacientamos com a lentidão dos caracóis. E de repente você
percebe que está numa batalha que nem escolheu estar, tentando se
defender de quem julga lhe conhecer melhor que você. Portanto, mesmo que
discorde ou acredite conhecer aqueles que ama, entenda que jamais o
saberá por completo, pois cada um carrega muito mais bagagem do que
supomos desvendar.
Tenho escolhido muito também. Cansei de ser um rio turbulento, e
essa escolha tem feito meus barcos de papel resistirem com mais leveza
desde então.
Assim, trace seus caminhos com cuidado, sem se deixar influenciar
pela linhagem de sua família _ essa coisa de sobrenome ou árvore
genealógica não pode ser responsável por nosso destino. Não é preciso
perpetuar as características, principalmente se não concordar com elas. O
que vai dentro de você é resultado de uma equação complicada, que
começou antes das primeiras palavras, e dar sentido a isso é
responsabilidade sua e de mais ninguém.
Quanto a seu pai, a escolha não foi simplesmente entre ser médico ou
caminhoneiro, como ele tanto queria. Suas maiores batalhas foram
travadas do lado de dentro, tentando superar os próprios obstáculos_
como a timidez quase paralisante_ e a resolução de habitar-se com
coragem, humildade e serenidade.
Finalmente lembre-se: a vida não é e.x.a.t.a.m.e.n.t.e. como a gente
quer. E por mais que seja tentador ditar as regras, não temos controle
sobre tudo. Então escolha somente fazer-se bem, principalmente quando
tudo parecer errado, confuso ou ruim do lado de fora.
Mais importante que o enredo, o que vale é como você se portou dentro da
história que contou.
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