terça-feira, 2 de junho de 2015

Abandono

Revista Vida Simples - Abandono

CONFISSÃO



Tente dizer eu te amo para quem você não ama.
Vai fracassar. A declaração trava, engasga, nem com cachaça para descer.
O eu te amo não permite impostores. Não aceita mentirosos, falsificadores, farsantes.
Você não precisa ter absoluta certeza para dizer o eu te amo, mas não pode ter dúvida.
O eu te amo depende do ato de se imaginar junto, de se imaginar acordando e dormindo junto, de prever viagens e longas conversas de madrugada.
Você não precisa acreditar cem por cento na relação, mas já sente a esperança de amar, a possibilidade de amar, a facilidade de amar.
Não dá para dizer eu te amo quando percebe que não há futuro.
Talvez seja o momento mais cruel de um encontro, deixar alguém no vácuo, condenado a não responder para quem confessou te amar.
Poderá contemporizar e explicar que gosta muito, que vem curtindo o convívio, que adora a companhia. Não é a mesma coisa.
O eu te amo é tão sério que não tem como brincar. É uma confissão de morte. A morte do que você já foi um dia.
Fabrício Carpinejar

A SURRA DE CINTO


Meu amigo levou uma surra do pai aos 13 anos, de cinto.
Foi a primeira e única surra que recebeu na vida. Por uma injustiça. Responsabilizado por quebrar o rádio que nem usava. Um rádio que deveria ter estragado pelo mau contato do fio.
A fivela marcou suas costas.
Quando apanhou no quarto, não gritou por socorro, não chorou, não esperneou. Manteve-se obediente até o final do castigo, ficava preocupado em localizar a língua de metal. E se distraía tentando adivinhar os próximos ricochetes do ferrinho em sua pele.
Seu pai já não ajudava na demonstração do afeto: quieto, casmurro, de poucas palavras. Depois disso, a admiração tácita pelo papel de cuidador também se desfez lentamente. Nem o silêncio entre eles se salvou, evitavam olhar-se nos olhos.
Em toda conversa com o pai, esperava um pedido de desculpas, que não veio. Ambos comiam de cabeça baixa, como cavalos cansados.
O pai explodiu porque estava desesperado, irritado, preocupado com falta de vaga na construção civil e com a demora em arranjar um novo posto de trabalho.
O filho era a pessoa mais próxima no momento de raiva. Dependendo das circunstâncias, poderia ter sido a mãe, o irmão, o cachorro em seu lugar.
Só que sobrou para ele. E ele cresceu, casou, teve uma filha, obteve reconhecimento como professor universitário, abriu uma empresa de engenharia, mas jamais esqueceu o assunto. Seguiu adiante na vida, ainda que engasgado pela incompreensão do sangue. Amadureceu de um jeito ou de outro, pela convicção da aparência, apesar de permanecer parado na mesma lembrança.
Um dia, quando ele já ultrapassara os 40 anos, o então velho pai entra em sua residência, senta para tomar café da manhã. Cumprimenta a nora e a neta e se põe em sua frente com a pupila mareada.
Do nada, sem nenhum contexto, enquanto abria o pão com suas mãos macilentas e veias azuladas, o pai começa a se desculpar:
– Lembra quando eu lhe bati em sua infância? Lembra? Você estava na oitava série. Eu queria pedir perdão. Estava fora de mim. Foi um erro, um grande erro.
Quando finalmente obteve a retratação, o que ansiava ao longo de 27 anos, o filho não tirou proveito da situação, não foi arrogante, não descontou a raiva, não se prevaleceu, não julgou a demora, não condenou o atraso, não jogou na cara que pensou naquilo todos os dias, preferiu aliviar o sofrimento paterno, optou por cuidar do constrangimento paterno, o amor ao pai superou seu orgulho ferido, e apenas disse:
– Nem me lembro, pai.

Carpinejar

Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 02/06/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18181

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Reaquecendo...


Quanto tempo ainda vamos perder?

“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.”
Ah, Drummond.
Ele sempre foi minha grande paixão. Mas essa frase… Essa frase é especial. Foi a frase que minha amiga amada pediu para pintarem na parede do seu quarto quando começou a quimioterapia. E ela viveu todos seus dias intensamente, com um sorriso no rosto, pedindo pra ficar mais um pouco.
Até que um dia ela se foi. E eu, aos 18 anos, me prometi que viveria por mim e por ela. Que não teria medo de arriscar e que nunca faria da minha vida um mero encadeamento de dias. Estou tentando.
Então, diariamente, uma pergunta martela na minha cabeça: quanto tempo perdemos?  E quanto tempo ainda vamos perder?
Porque me falta tempo; porque acordo cedo amanhã; porque tô com enxaqueca; porque tô de dieta. Com excesso de zelo, excesso de cautela, excesso de fé na ideia de que sempre pode ficar para amanhã.
Chega, vai. A vida é só uma e a vida passa correndo. Quando a gente vê, já passaram as chances e tudo o que sobra na cabeça é um triste e fosco rol de hipóteses não tentadas e de riscos não corridos.
E essa conversa não é necessariamente sobre projetos grandiosos. É simplesmente sobre sopros de liberdade. Sobre uma vida mais feliz por ter menos regras intransponíveis.
É sobre pegar um cinema sozinho, de preferência numa terça-feira.
Sobre comprar uma passagem poucas horas antes do voo. E ir só com a roupa do corpo.
Sobre voltar da padaria com um sonho pro porteiro do prédio.
Sobre ir de pijama à garagem buscar aquele negócio que ficou no carro.
Sobre entrar no elevador com a toalha de banho enrolada na cabeça
Sobre comer jiló, javali, jaca, jacaré.
Sobre pedir desculpas por um erro de 2002.
Sobre pegar insetos nas mãos.
Sobre ligar, dizer que sente falta, que sente muito, que sente que pode ser agora.
Sobre comprar aquela peça de roupa que você sempre namorou, mas que acha inadequada para a sua idade ou para o seu tipo físico.
Sobre fazer caretas para as crianças da perua escolar no trânsito.
Sobre parar num bar e tomar uma, duas, três cervejas só na sua companhia, em horários inadequados.
Sobre deitar na cama, dormir de roupa, sem escovar os dentes.
Sobre finalmente mandar pessoas tóxicas à merda.
Sobre cortar curtinho, pular do alto, nadar no fundo.
Sobre um belo dia resolver mudar e fazer tudo o que se quer fazer, se libertando daquela vida vulgar que a Rita Lee cantou.
Sobre não se render mais um dia à tal prudência egoísta que nada arrisca de Drummond.
Porque é fácil levar uma vida banal e queixar-se a respeito dela. Mas será que quando a vida não é fantástica, a culpa é do destino ou a culpa é nossa?
Eu não sei se a vida é curta, mas sei que essa vida é uma só. E que o tempo não volta.
A gente tem que fazer o que tem que ser feito.
Pode ser hoje. Façamos ser hoje.

Ruth Manus
20 maio 2015