terça-feira, 5 de novembro de 2013

Não existe dia ruim.

 
Não existe dia ruim. Sempre há chance do dia ser feliz. Mesmo que seja tarde. Mesmo que seja de madrugada. Uma gentileza salva o dia. Um bife milanesa salva o dia. Uma gola branca e engomada salva o dia. Uma emoção involuntária salva o dia.
Nunca o dia está inteiramente perdido. Não devemos acreditar que uma tristeza chama a outra, que se algo acontece de errado tudo então vai dar errado. Lei de Murphy não foi aprovada pela Câmara dos Deputados.
Confio no improviso, na casualidade, no movimento das cortinas na janela.
Até o último minuto antes da meia-noite, você pode resgatar o contentamento. É uma gargalhada do filho diante da papinha, transformando a cadeira num imenso prato. É algum amigo telefonando para confessar saudade. É sua mulher procurando beijar a orelha mandando sinais de seu desejo. É o barulho da chuva na calha, é o estardalhaço do sol na varanda. É encontrar - iniciando na tevê - um filme que adora e já assistiu cinco vezes. É oferecer colo ao seu gato. É planejar uma viagem de férias. É terminar um livro que abandonou pela metade. É ouvir sua coleção de LPs da adolescência. É comprar uma calça jeans em promoção. É adormecer no sofá e receber a coberta silenciosa de sua companhia. É a possibilidade feminina de passar um batom e pintar as unhas. É possibilidade masculina de devolver a bola quando ela sobe a cerca num jogo de crianças
A felicidade é pobre. A felicidade precisa de apenas um abraço bem feito.
Sigo esperançoso. Não coleciono tragédias. Sofro e apago. Sofro e mudo de assunto, abro espaço para palavras novas, para lembranças novas.
Vejo o esforço da abelha tentando sair do vidro, e não sou melhor do que ela. Vejo o esforço da formiga carregando uma casca de laranja, e não sou melhor do que ela. Viver é esforço e nos traz a paz de sonhar – querer não fazer nada é que cansa.
Não existe dia que não ganhe conserto. Não existe dia morto, dia de todo inútil.
Não desista da alegria somente porque ela se atrasou. Pode ter recebido esporro do chefe, ainda assim a hora está aberta. Comer um picolé de limão é capaz de restituir sua infância.
Não encerre o expediente com o escuro do céu. Pode não ter grana para pagar as contas e ter que escolher o que é menos importante para adiar, ainda assim é possível se divertir com o cachorro carregando seu chinelo para o quarto.
Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado.
 
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 03/11/2013 Edição N° 17603

Uma Oração para os Vivos

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Adoro Carpinejar...





A PAIXÃO ACONTECE

Se você recusou sua rotina, deixou de fazer aquilo que mais gostava em nome de alguém, torrou seus bens, abandonou os amigos e os prazeres mais fundamentais, isso não é amor, é paixão.
A paixão é uma fatalidade, o amor é uma escolha.
A paixão é egoísta, o amor é generoso.
A paixão é renúncia, o amor é recomeço.
A paixão arrebenta, o amor adapta.
A paixão é confinamento, o amor é abrigo.
Não há paixão pequena, paixão simbólica, paixão discreta: é grandiosa no início e escandalosa no final.
Não recomendo, muito menos desaconselho: é experiência para os fortes.
Nada do que viveu antes terá sentido, nada do que possa viver depois terá sentido. Conjugará interminavelmente o presente do indicativo.
Atingirá um extremo emocional perigoso: você passa a ser do outro em tempo integral. Conhecerá sua pior crise de nervos, seu mais fundo estresse emocional, seu mais absurdo esgotamento da memória, sua mais humilhante falência financeira.
Uma vez apaixonado, você rejuvenesce 10 anos em 10 horas. Mas, uma vez desapaixonado, você envelhece 10 anos em 10 horas.
A paixão ou é imensa, ou não é. Ela não pede desculpa, não negocia: equivale a uma dependência química em seu estado mais selvagem.
É o equivalente ao sequestro de uma vida. A própria vida. Você é o sequestrador e o refém ao mesmo tempo.
Não há desconto, adiamentos, pechincha. A paixão exige pagamento à vista, execução sumária.
Nunca vi nenhum apaixonado transferir compromisso para o dia seguinte, ele somente antecipa.
Não é que a paixão seja rápida, é devastadora, não sobra coisa alguma para continuar.
O apaixonado não abre negócios, mas fecha portas. Não areja a cabeça, não tem grandes ideias, não combate preconceitos, emburrece progressivamente, a ponto de só ter um número para ligar e um lugar para ir.
Ele não tem sangue-frio, não raciocina, não elabora planos, não arruma álibis.
A paixão é um crime malfeito, facilmente descoberto.
Os envolvidos desprezam o mundo, não se importam se estão sendo vistos, se beijam em público, se são casados, noivos ou recém-viúvos, se serão criticados pelos vizinhos e familiares.
O apaixonado joga tudo para o alto e não fica para segurar nada.
Ele não tem discernimento, não lê jornal, perde sua capacidade de decidir sobre a trajetória. Apresenta a superstição de um velho, a intuição de uma criança.
É um idiota sábio. Idiota porque não se defende da tristeza, sábio porque não se protege da alegria.
Não existe mais bom e ruim, certo e errado, esquerda e direita. Não tem sentido julgar. Não tem como se orgulhar do que foi realizado, muito menos se arrepender.
Você muda de personalidade, larga trabalho, descuida da família para se dedicar inteiramente a não pensar e somente sentir.
Não podemos nem dizer se a paixão ajuda ou atrapalha, ela acontece. É uma sorte azarada.